segunda-feira, 20 de agosto de 2012

texto 5


Às vezes não se sabe. Nunca se sabe muito. E sabemos tão pouco acerca dos outros. E pouco acerca de nós. Por vezes, pensa-se que se sabe o que os outros precisam. Achamos que a felicidade deles é a nossa, por sermos felizes com eles. Por vezes, também, a nossa felicidade não existe, ou existe, mas fora daquilo que nos dava felicidade. E procuramos estar bem. Quando não estamos bem com os outros, procuramos estar bem, na mesma. Nem que seja connosco.

Por vezes, sinto-me desencontrada dos outros. Gosto de estar só. Gosto muito de silêncio. Por isso, gosto tanto de ler. Quando leio, estou só, no silêncio. Só com os meus pensamentos. Só com as minhas emoções. Gosto de ordem. Adoro a ordem. Preciso dela para me organizar por dentro. Gosto tanto como de uma folha em branco. A folha em branco permite organizar-me por dentro, pôr em ordem os meus pensamentos e as minhas emoções.

Por vezes, gostava que os outros fossem como eu e que me respondessem numa folha em branco para organizarem os seus pensamentos e as suas emoções. Por vezes, os outros não sabem que estão infelizes. Julgam-se felizes e pensam que encontram a felicidade fora do que realmente lhes devia dar felicidade. Também já passei por isso. Todos passamos. Já menti. Todos mentimos. Já menti a mim própria e aos outros e isso não traz felicidade. Só desgraça.

Se averiguarmos bem, nunca mentimos a nós próprios. Fingimos que o fazemos, pois sabemos sempre onde está a verdade, onde está o certo e o errado. Muitas vezes, queremos fingir que não sabemos. Justificamo-nos perante os outros para nos defendermos e ouvimos a voz de nós próprios a dizer que está errado; que o certo é o certo e o errado é o errado. Justificamo-nos com a alegoria das circunstâncias e da natureza humana. São fases.

Amadurecemos com a idade, mas, por vezes, as emoções e os pensamentos de algumas pessoas não amadurecem. Colam-se ao passado e querem ser o que já não são, negando o tempo. Têm medo de morrer, sobretudo. Às vezes penso que estou pronta para partir para o outro mundo, mas também tenho medo: não do desconhecido, mas de não viver; de perder a vida ou a felicidade que pensamos que ainda ela nos pode dar. Só Deus sabe quando nos vamos embora.

Contudo, louvo a vida e acho que ela é extraordinária. Mas não tem de ser extraordinária na loucura, ou na força. Ela é extraordinária na sua Ordem; na sabedoria subtil que cada amanhecer traz; na evolução que cada ser pode experimentar; nas lições que nos fazem crescer; na libertação dos sentidos; no silêncio lunar; no requinte da arte; no prazer da música. A tempo. Manhã, tarde, noite. E uma cadência interior que nos faz saber. Perceber. Estar em consciência.

O riso e a gargalhada trazem do fundo de nós uma leveza, um corte na efemeridade. Por isso gostamos tanto de ser felizes. Eu gosto. Da minha felicidade.

sábado, 5 de maio de 2012

texto 4


HORA DA MÃE

É uma espécie de torpor, a escrita. Algo que nos invade e que, depois, nos faz separar do mundo. Ocorre uma espécie de pausa no sofrimento. A escrita é, muitas vezes, terapêutica e não há, na minha opinião, texto que consiga desapegar-se do seu autor. Se o texto é autobiográfico ou não, é algo que nunca me incomodou. Que perguntas é que eu posso fazer por ti? - perguntam-me as minhas palavras.


Era verão e estava sol, mas eu não estava na praia e, quando estava, olhava para o mar e para o sol como se existisse um vidro e os sentimentos me tolhessem a visão. Esperava pela hora da visita e esperava que deus me viesse fazer uma visita no olhar de uma enfermeira ou na boca de um médico. De manhã, empatava as horas, percorrendo as ruas da cidade e aquilo que outrora me fazia sentir feliz pesava-me no peito. Via as pessoas ir para o trabalho ou para a praia; via pessoas a entrar nos cafés e considerava-as felizes. Pensava que me podiam também considerar feliz, pois eu envergava vestidos coloridos e apressava o passo a fingir que a vida era leve. Apanhava o autocarro. Um número que decorrei e do qual nunca mais me lembrei. Enfiava-me lá dentro todos os dias, à mesma hora, e pensava que um dia já não ia precisar de o fazer mais. E assim foi.

O autocarro arrancava e eu sentava-me sensivelmente no mesmo lugar. Com a cabeça encostada ao vidro, punha as mãos dentro do saco e sentia que as minhas mãos apalpavam uma garrafa com água por beber, ou um pedaço de papel. À mistura, havia um pedacinho de pano com uma casa de ponto cruz bordada por mim e uma pequena revista de moda. O autocarro passava pelas mesmas ruas todos os dias e eu reconhecia as lojas, os quiosques, os apeadeiros, as passadeiras, os postes de luz e o Júlio de Matos. Mais à frente, o autocarro inquinava com o sol e a torre do tombo caia-me na cabeça. O autocarro passava em frente ao teu hospital e eu queria que ele andasse muito e que nos fosse buscar ao futuro. Mas não era assim. A vida é verdadeira.

Estacava o autocarro e eu saía. Era muito calor. Estava muito calor. Em lisboa, em agosto, faz muito calor. O alcatrão subia-me à goela e eu aproveitava para me ouvir dizer Que calor! Andava uns metros e aquele passadiço era o passeio do campo de Fátima, o passeio das preces. Um edifício grande albergava cinco mil funcionários e o dobro dos doentes. Todos os dias aquele edifício me engolia e andava por mim. Estavas no sétimo andar e os corredores estavam longe de ti. Para chegar ao elevador que me levava ao sétimo andar tinha de ler as instruções, pois os elevadores confundiam-se com a classificação dos pontos cardeais. Apanhava o ar que me levava a ti. Esperava-se muito: por vezes, trinta minutos. Esperava-se trinta minutos no rés-do-chão. O elevador enchia-se comigo e com outros familiares. Por vezes, saíamos todos no quarto andar, pois aparecia uma cama e a cama tinha direito e nós não. Olhava para o relógio, pois o tempo ficava mais triste no elevador. Finalmente, chegava ao sétimo andar. Misturado com o alívio de chegar ao meu destino ficava o aperto de ser surpreendida com o desconhecido. Sabia que te ia ver, mas nunca chegava. Não era o suficiente ver-te. Eu queria mais.

Entrava na enfermaria e lia pela enésima vez as suas letras. O nome pairava sobre as nossas cabeças e avisava-nos que os nossos familiares estavam nos cuidados da hematologia. Aí, desligava os sorrisos que tinha esboçado aos outros familiares e só me interessavas tu. Ia encontrar-te dentro de segundos e pedia a deus que me dissesses Filha o médico diz que tenho melhoras; que já não é preciso fazer o autotransplante; que a massa desapareceu e que vou voltar a ver as flores da fajã, mas não. Nada disso. A vida é verdadeira.

Entrava no teu quarto. Era uma prisão. Tinham-me posto uma bata azul esterilizada e uma máscara a tapar os lábios. Sorrias e dizias olá. Eu entrava depressa e olhava para a bacia onde timidamente lavavas a cara de manhã, quando te deixavam levantar. Olhava para a janela e reparava que ela havia de permanecer fechada. Olhava para ti e via os teus olhos azuis cheios de mim. Beijava-te muito. Beijava-te a cara, a cabeça careca, beijava-te, outra vez, tanto, que tu dizias Está bom. Se eles põem uma máscara é para me protegerem dos micróbios, filha. Quais micróbios, mãe! E sorvia os beijos com medo que fossem os últimos que te dava. Perguntava por tudo, mas olhava atentamente para ti. Tu eras muito bonita, mãe. Mas já não gostavas de te ver ao espelho. Nunca foste vaidosa. Pouco tempo tiravas para ti e, agora, que tinhas tantas horas para gastar, não olhavas para ti. 


Via que tinhas um tubinho novo, ou que as nódoas negras se tinham alastrado ou que o sangue naquele tubo estava mais denso. Ajeitava-te os tubos e passávamos à hora da vaidade. Eu fingia que estávamos muito contentes com a muda da fralda-cueca e queria todos os dias vestir-te uma camisa de dormir que fosse tua. Tu, muito pragmaticamente, como sempre, dizias que as senhoras enfermeiras e os senhores enfermeiros preferiam as camisas do hospital, mas eu sabia que eles eram uns queridos e que tu só fazias isso, porque, mesmo a morrer, pensavas nos outros. Eu continuava a trazer-te camisas novas e tu dizias Filha, tens o meu cartão para pagares estas camisas? E eu, que não era preciso, que era uma oferta minha. Gostavas, pela primeira vez na vida, que te massajasse as mãos. Passava creme nas mãos e esfregava devagarinho. Olhavas para os teus dedos e olhavas para os meus olhos quando perguntavas se ias conseguir voltar a escrever. Eu dizia Claro que sim, mamã, mas não sabia. 


Não sabia se ias voltar a escrever e olhava para os teus papéis. Reparava que não conseguias escrever bem o nome Vanda. A caligrafia estava larga. As linhas tombavam e tu dizias-me que era o teu pior receio: não voltar a escrever. Tu, que eras professora. Eu incentivava-te e dizia A mamã que continue a treinar com a bola de borracha. Mas os teus dedos e as tuas mãos estavam queimados pela quantidade de quimioterapia que levaste. Foi por isso também que pesavas trinta e sete quilos. O medo de saires do hospital era tão grande como o medo da verdade. Deus conhecia a verdade desde o início e nós não. Ele brincou connosco nos corredores do hospital e a morte escapava-lhe ao controlo. Aí, nesse grande monstro que engoliava famílias, dia após dia, deus perdia o controlo. Foi por isso que a morte venceu quando levou a mãe de uma menina de 9 anos e um rapaz de 20. A morte aparecia nos sacos pretos da quimioterapia e comia todos os glóbulos que lhe apetecia. Então, deus sentava-se a chorar connosco, impotente, nas escadas dum reinado que não era o seu.

Com o cair da tarde, a angústia subia: tinhas medo que eu andasse sozinha no metro e eu tentava acalmar-te dizendo o quanto já era crescida e como sabia andar naquela cidade sozinha. O teu medo - de não me conseguires proteger mais - ia comigo quando eu descia as escadas ventosas. Sabia que nunca mais ias pôr-me o braço por cima. Consumia-me que eu fosse ter um serão, enquanto tu ficavas com quatro paredes beges e um lavatório branco. A televisão funcionava, mas as tuas preocupações ficavam bem para além daquele quarto. Pairavam nas memórias da extraordinária infância que me deste, no facto de eu poder ficar órfã de pai e mãe, no facto de saberes que eu teria de despejar uma casa de doze assoalhadas recheada de um património de quatro gerações, no facto de não saberes se me ia lembrar de avisar todos os amigos para o teu um funeral, ou no facto de saberes que eu ia perder a pessoa mais importante da minha vida: tu.

Para além disso, a maior dor de todas era a que tu vias nos meus olhos. Eu, que não sou mãe, entendi que a maior dor de uma mãe é saber que a sua filha possui a maior dor do mundo e não poder tirar-lha. Quando no apogeu da esperança subi as escadas do sexto andar com a capa do senhor santo cristo nas mãos e ta depositei no colo, tu disseste Senhor, dai-me mais uns anos para eu ver essa filha. Foi a única vez que mencionaste a morte. De resto, era um assunto inenarrável e, até hoje, não me perdoo por te ter trazido dentro de quatro tábuas, num avião de lisboa - nos aviões que te encheram a vida de sonhos e passeios; naqueles que, tanta vez, nos passearam a liberdade.

Ao invés disso, depois de umas horas a gemeres porque os órgãos foram, por ordem, parando dentro de ti, pedi a deus, cobardemente, que te levasse para o paraíso. Fiquei de mão dada e não quis largar. Deram-me de comer e voltei a correr para ti. Destinei a tua mortalha, ainda não estavas oficialmente morta e detestei-me por isso. Fiz-te um discurso dizendo que foste a melhor mãe do mundo e pedi que desses um beijo meu ao Tibério. Esboçaste um ténue sorriso. Aí, era ainda o princípio da tarde. Seguiram-se muitas horas e, no meio das horas, eu pensava que há pessoas que dizem que os milagres existem, mas já nem sabia se o milagre, naquela altura, era tu viveres ou morreres. Agora, sei que era tu viveres.

Beijei-te e todos os roncos que o teu organismo produziu fizeram um eco no corredor e no quarto, mas onde eles se ouviam melhor era dentro de mim. Um segundo não passava antes que outro gemido chegasse e o meu coração batia com eles. Queria entrar dentro de ti e curar-te, mas não podia. Só podia ficar de fora e a única coisa que nos ligava eram as nossas mãos. Isso e uma vida inteira uma com a outra. Uma vida inteira que ia acabar agora. E eu não queria, nem quis. Quando uma enfermeira pôs a sua mão em cima das nossas, eu perguntei Morreu?

Ela nunca me respondeu. Até hoje estou à espera da resposta. Dói demais. Não quero ouvir. Só quero que tu saibas que te amo. 


sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

texto 3

A laranjada misturada com a frescura do pão com chouriço fez-me lembrar a festa da fajã e cheirou-me ao incenso esmagado debaixo dos pés. O dia está limpo e fresco. Não é daqueles dias que provocam angústias. É daqueles dias em que relembrar sabe bem. Aparece-me um sorriso na boca.

Esta sensação fez-me pensar na Júlia. Para mim, a Júlia é o máximo. A Júlia é uma menina de sardas e totós. Usa um gorro branco cheio de lã e aparece no conto de fadas de qualquer professor. No outro dia, expliquei uma coisa. No fim da aula, quando, no desafogo do intervalo, saíam como passarinhos, senti um abraço pequenino. Um abraço pequenino de uma pessoa pequenina. Era a Júlia que me dizia obrigada. Eu perguntei “obrigada, porquê, querida?” e ela disse “por me ter explicado aquilo que eu não percebia desde o 4º ano”. Fiquei embasbacada. Consegui responder um insonso “de nada” que, em nada, correspondeu ao que eu senti por dentro. Sou abençoada. Aquela menina é um anjo. Vir ter com um professor e agradecer-lhe o seu dever …

Fiquei a pensar neles: naqueles meninos, na Júlia … naqueles meninos, outra vez.

Sinto-me abençoada por ser professora. Por ter escolhido uma profissão tão extraordinariamente humana. Por, em vez alguma, me ter apetecido desistir de ensinar. Sim, já apanhei alunos muito difíceis: alunos toxicodependentes, alunos revoltados, alunos brutos, alunos amargos, alunos mal-amados, alunos que não querem aprender, alunos que não sabem, alunos que não gostam, mas, alunos. São sempre alunos. Gosto deles. De todos. Quando chego à escola, após 20 anos, e os vejo descer da camioneta, todos os dias, penso em como os pais e a sociedade confiam em nós. Despejam-nos de manhã e levantam-nos à noite. Passam os dias connosco e somos nós que, ao longo do dia, vamos dar-lhes os sorrisos, os sermões, os conselhos, as reprimendas, as esperanças, as expetativas, a matéria, os tpc’s, as fichas, os avisos, os gritos, as ameaças. E eles olham-nos de lá. Das mesas pequeninas. Atrás de cada mesa, uma pessoa. Grande ou pequenina. Meiga ou crua. As mochilas, os penteados, os cadernos, os telemóveis, os cachecóis, os lenços, os estojos, os lápis, as argolas, os livros, os cadernos, os quadros, as janelas, as portas e a sala. Um mundo. O meu mundo.

Os alunos são, incrivelmente, “eles mesmos”. Têm uma vida tão nova para gastar. E como são muito novos, por vezes, não sabem usá-la. Variam as idades, os feitios, as alturas, a cor do cabelo, o estilo, os grupos, as tendências, as inteligências, as vontades e a sabedoria, mas todos querem o mesmo: passar. Mesmo os que dizem que não; mesmo os que não parecem importar-se. Nunca viram a alegria nos olhos de um aluno? O brilho de uma positiva? É um bocadinho de magia. Às vezes, só um segundo de magia. Mas é magia.

Volto àqueles meninos. Aos meninos da Júlia. À Júlia e aos meninos. Sou abençoada por ser professora deles. Eles trazem alegria, brilho, vivacidade e vontade. Querem saber, conversam, desconversam, mexem com a sala, provocam ruído, fazem silêncio, perguntam, elaboram, trabalham, preguiçam, melhoram, pioram, estudam, fazem e não fazem. São como todos e todos são como são. A Júlia é “ela própria”. Fez um trabalho para o dia internacional da pessoa portadora de deficiência e fez o trabalho pela turma. A Júlia é a Júlia. Tem luz. Nem todos são anjos, mas todos são pessoas. Só, por isso, devem ser amados.

Hei de morrer professora.

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

texto 2

Uma amiga minha tem cancro. Aliás, duas amigas minhas têm cancro. É o máximo que vou dizer delas, pois não lhes pedi licença para falar delas aos outros, muito menos para publicitar num blogue seja o que for sobre elas. De qualquer modo, esta situação fez-me pensar muito: nelas, nas pessoas que têm cancro, na minha mãe, que teve cancro, e no natal. O natal misturou-se-me com outras ideias, pois, na semana passada, retirei um caixote que continha bonecos de presépio. Bonecos de barro, antigos.

Desde o ano em que a minha mãe morreu de cancro que não ia buscar aquele caixote. Já tinha feito o presépio o ano passado, mas sem aqueles bonecos. Tentava aliviar a dor, pondo um menino jesus mais modernaço, com uns laços estilizados e uma ervilhaca frondosa. Este ano, convenci-me de que não ia adiar mais o inadiável. Assim, recuperei a memória de todas as minhas emoções natalícias, ao desembrulhar aqueles bonecos, um a um, à medida que os ia tirando do caixote. O papel sempre cheirou a mofo, mas aqueles bonecos sempre me trouxeram a maior alegria do mundo, no natal.

A minha mãe contava, todos os anos, uma história sobre eles. O meu presépio era feito no alto da escada e encimava um patamar. O meu presépio tinha dois andares: era um luxo! Sustentava-o uma armação construída pelo avô artur. Conhecem aquelas luzes que parecem estrelinhas e que piscam muito, aquecendo o nosso coração? Era assim o meu presépio. Perfeito.

No primeiro andar, havia a sagrada família e o menino jesus era muito maior do que os pais; havia uma lavadeira e uns patinhos que desciam uma ribeira; havia um lago feito com um espelho que a avó armanda guardava na gaveta da cómoda; havia 6 reis magos (uns que chegavam à gruta e outros que ainda iam a caminho – dizia a minha mãe). Fui apresentada a diferentes pastores, aos seus rebanhos, a um casal de noivos, ao padre e ao sacristão. A minha mãe explicava-me que não fazia mal existir um soldado no presépio. Aprendi que somos todos bem-vindos! Que, no presépio, o mundo é perfeito! Que podem coabitar seres de diferentes origens, raças e épocas cronológicas diferentes, pois um presépio serve para isso mesmo: para nos ensinar como devemos ver o mundo e como devemos lidar uns com os outros, durante o ano inteiro.

O meu presépio tinha uma rapariga muito bonita a sair duma casa velha e uma rapariga pobrezinha a sair de um palácio; umas levavam laranjas e ameixas ao menino jesus; outras, presentes de incenso, ouro e mirra. O moinho trabalhava e moía a farinha do padeiro. O mesmo boneco, todos os anos comprava um saco de farinha e levava-o no seu burro. Os foliões tocavam e uns bonecos mais pequeninos eram os dançarinos. Havia uma matança do porco e uma mulher, com uma saia de chita, que circundava a matança. Para que era? Ela ia recolher o sangue para as morcelas.

Muitos e muitos bonecos, cheios de vida, de história e de alegria. E a minha alegria enchia o meu peito e espalhava-se pela casa, cheirando, cheirando. No fim, a minha mãe ligava as luzes. Vocês nem imaginam a beleza que era! A casa cheirava a sabão branco e azul; as escadas tinham sido enceradas e, no parapeito que acompanhava o corrimão, púnhamos uns candeeiros de petróleo que tinham vindo do nordeste. Baixava-se a luz do alto e esperava-se a hora do jantar. Cheirava o jantar que a avó fazia. A minha mãe ia tomar banho e ficava toda cheirosa. Eu aguardava a minha vez e pregava os olhos no presépio. O meu pai ia chegar. Era vivo. Eram todos vivos. O meu presépio era perfeito.

Este ano, tirei a matança, a menina das morcelas, os foliões, os romeiros, os noivos, o padre e o sacristão. E chorei, chorei. O salgado das lágrimas misturou-se com o mofo do papel. Mas ficou tão bonito o meu presépio. Cheio da minha mãe e de mim.

Eu estou viva e as minhas amigas também.

Elas estão a ficar boas. 

Bem bom que ainda tenho bonecos. 

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Texto 1

Assim, de repente, não sei a quem escrever. Como se, de repente, não houvesse destinatário; como se as coisas supérfluas fossem mais importantes do que as essenciais. Parece-me, hoje, que o meu mundo é o daqueles que os velhinhos diziam. O mundo do não presta. O mundo do sem sentido. Mas eu sinto-me plenamente viva e, porque vivo, recordo.
Talvez o karma seja o que nós interpretamos para nós como o “algum sentido nisto”. Talvez o karma exista acima das definições religiosas, seja uma espécie de definição do barro. O meu molde pode estar ligado ao entendimento da morte ou à aceitação da solidão.
Não gosto muito de pôr as coisas em termos pessoais. Assim sendo, parece-me que faço o canto do choro; o muro das lágrimas. Quando nos centramos em nós, damos muita importância a nós. Ficamos as vítimas. Ficamos acompanhados de espetadores que observam o quanto miseráveis somos ou nos queremos fazer parecer, pedindo dó e piedade. E não é isso que quero. Só quero um destinatário. Alguém que me ouça, calado. Ou que me leia, através das linhas, ou da minha cara. A minha cor mais amarela, do cansaço, farta de dizer à vida que não me apresente mais a morte ou a esterilidade.
Morte e tio dionísio. 
Morte e bisavó Ludovina. 
Morte e primo Manuel. 
Morte e pai. 
Morte e primo José.
 Morte e primo António. 
Morte e tio José. 
Morte e tio Manuel.  
Morte e avô Ernesto. 
Morte e avó Armanda. 
Morte e avô Artur. 
Morte e mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe e mãe.
Ouves-me? Mesmo que sim, não me interessa. Não me respondes.
Estou sozinha.
Espero que me ouças.