sábado, 5 de maio de 2012

texto 4


HORA DA MÃE

É uma espécie de torpor, a escrita. Algo que nos invade e que, depois, nos faz separar do mundo. Ocorre uma espécie de pausa no sofrimento. A escrita é, muitas vezes, terapêutica e não há, na minha opinião, texto que consiga desapegar-se do seu autor. Se o texto é autobiográfico ou não, é algo que nunca me incomodou. Que perguntas é que eu posso fazer por ti? - perguntam-me as minhas palavras.


Era verão e estava sol, mas eu não estava na praia e, quando estava, olhava para o mar e para o sol como se existisse um vidro e os sentimentos me tolhessem a visão. Esperava pela hora da visita e esperava que deus me viesse fazer uma visita no olhar de uma enfermeira ou na boca de um médico. De manhã, empatava as horas, percorrendo as ruas da cidade e aquilo que outrora me fazia sentir feliz pesava-me no peito. Via as pessoas ir para o trabalho ou para a praia; via pessoas a entrar nos cafés e considerava-as felizes. Pensava que me podiam também considerar feliz, pois eu envergava vestidos coloridos e apressava o passo a fingir que a vida era leve. Apanhava o autocarro. Um número que decorrei e do qual nunca mais me lembrei. Enfiava-me lá dentro todos os dias, à mesma hora, e pensava que um dia já não ia precisar de o fazer mais. E assim foi.

O autocarro arrancava e eu sentava-me sensivelmente no mesmo lugar. Com a cabeça encostada ao vidro, punha as mãos dentro do saco e sentia que as minhas mãos apalpavam uma garrafa com água por beber, ou um pedaço de papel. À mistura, havia um pedacinho de pano com uma casa de ponto cruz bordada por mim e uma pequena revista de moda. O autocarro passava pelas mesmas ruas todos os dias e eu reconhecia as lojas, os quiosques, os apeadeiros, as passadeiras, os postes de luz e o Júlio de Matos. Mais à frente, o autocarro inquinava com o sol e a torre do tombo caia-me na cabeça. O autocarro passava em frente ao teu hospital e eu queria que ele andasse muito e que nos fosse buscar ao futuro. Mas não era assim. A vida é verdadeira.

Estacava o autocarro e eu saía. Era muito calor. Estava muito calor. Em lisboa, em agosto, faz muito calor. O alcatrão subia-me à goela e eu aproveitava para me ouvir dizer Que calor! Andava uns metros e aquele passadiço era o passeio do campo de Fátima, o passeio das preces. Um edifício grande albergava cinco mil funcionários e o dobro dos doentes. Todos os dias aquele edifício me engolia e andava por mim. Estavas no sétimo andar e os corredores estavam longe de ti. Para chegar ao elevador que me levava ao sétimo andar tinha de ler as instruções, pois os elevadores confundiam-se com a classificação dos pontos cardeais. Apanhava o ar que me levava a ti. Esperava-se muito: por vezes, trinta minutos. Esperava-se trinta minutos no rés-do-chão. O elevador enchia-se comigo e com outros familiares. Por vezes, saíamos todos no quarto andar, pois aparecia uma cama e a cama tinha direito e nós não. Olhava para o relógio, pois o tempo ficava mais triste no elevador. Finalmente, chegava ao sétimo andar. Misturado com o alívio de chegar ao meu destino ficava o aperto de ser surpreendida com o desconhecido. Sabia que te ia ver, mas nunca chegava. Não era o suficiente ver-te. Eu queria mais.

Entrava na enfermaria e lia pela enésima vez as suas letras. O nome pairava sobre as nossas cabeças e avisava-nos que os nossos familiares estavam nos cuidados da hematologia. Aí, desligava os sorrisos que tinha esboçado aos outros familiares e só me interessavas tu. Ia encontrar-te dentro de segundos e pedia a deus que me dissesses Filha o médico diz que tenho melhoras; que já não é preciso fazer o autotransplante; que a massa desapareceu e que vou voltar a ver as flores da fajã, mas não. Nada disso. A vida é verdadeira.

Entrava no teu quarto. Era uma prisão. Tinham-me posto uma bata azul esterilizada e uma máscara a tapar os lábios. Sorrias e dizias olá. Eu entrava depressa e olhava para a bacia onde timidamente lavavas a cara de manhã, quando te deixavam levantar. Olhava para a janela e reparava que ela havia de permanecer fechada. Olhava para ti e via os teus olhos azuis cheios de mim. Beijava-te muito. Beijava-te a cara, a cabeça careca, beijava-te, outra vez, tanto, que tu dizias Está bom. Se eles põem uma máscara é para me protegerem dos micróbios, filha. Quais micróbios, mãe! E sorvia os beijos com medo que fossem os últimos que te dava. Perguntava por tudo, mas olhava atentamente para ti. Tu eras muito bonita, mãe. Mas já não gostavas de te ver ao espelho. Nunca foste vaidosa. Pouco tempo tiravas para ti e, agora, que tinhas tantas horas para gastar, não olhavas para ti. 


Via que tinhas um tubinho novo, ou que as nódoas negras se tinham alastrado ou que o sangue naquele tubo estava mais denso. Ajeitava-te os tubos e passávamos à hora da vaidade. Eu fingia que estávamos muito contentes com a muda da fralda-cueca e queria todos os dias vestir-te uma camisa de dormir que fosse tua. Tu, muito pragmaticamente, como sempre, dizias que as senhoras enfermeiras e os senhores enfermeiros preferiam as camisas do hospital, mas eu sabia que eles eram uns queridos e que tu só fazias isso, porque, mesmo a morrer, pensavas nos outros. Eu continuava a trazer-te camisas novas e tu dizias Filha, tens o meu cartão para pagares estas camisas? E eu, que não era preciso, que era uma oferta minha. Gostavas, pela primeira vez na vida, que te massajasse as mãos. Passava creme nas mãos e esfregava devagarinho. Olhavas para os teus dedos e olhavas para os meus olhos quando perguntavas se ias conseguir voltar a escrever. Eu dizia Claro que sim, mamã, mas não sabia. 


Não sabia se ias voltar a escrever e olhava para os teus papéis. Reparava que não conseguias escrever bem o nome Vanda. A caligrafia estava larga. As linhas tombavam e tu dizias-me que era o teu pior receio: não voltar a escrever. Tu, que eras professora. Eu incentivava-te e dizia A mamã que continue a treinar com a bola de borracha. Mas os teus dedos e as tuas mãos estavam queimados pela quantidade de quimioterapia que levaste. Foi por isso também que pesavas trinta e sete quilos. O medo de saires do hospital era tão grande como o medo da verdade. Deus conhecia a verdade desde o início e nós não. Ele brincou connosco nos corredores do hospital e a morte escapava-lhe ao controlo. Aí, nesse grande monstro que engoliava famílias, dia após dia, deus perdia o controlo. Foi por isso que a morte venceu quando levou a mãe de uma menina de 9 anos e um rapaz de 20. A morte aparecia nos sacos pretos da quimioterapia e comia todos os glóbulos que lhe apetecia. Então, deus sentava-se a chorar connosco, impotente, nas escadas dum reinado que não era o seu.

Com o cair da tarde, a angústia subia: tinhas medo que eu andasse sozinha no metro e eu tentava acalmar-te dizendo o quanto já era crescida e como sabia andar naquela cidade sozinha. O teu medo - de não me conseguires proteger mais - ia comigo quando eu descia as escadas ventosas. Sabia que nunca mais ias pôr-me o braço por cima. Consumia-me que eu fosse ter um serão, enquanto tu ficavas com quatro paredes beges e um lavatório branco. A televisão funcionava, mas as tuas preocupações ficavam bem para além daquele quarto. Pairavam nas memórias da extraordinária infância que me deste, no facto de eu poder ficar órfã de pai e mãe, no facto de saberes que eu teria de despejar uma casa de doze assoalhadas recheada de um património de quatro gerações, no facto de não saberes se me ia lembrar de avisar todos os amigos para o teu um funeral, ou no facto de saberes que eu ia perder a pessoa mais importante da minha vida: tu.

Para além disso, a maior dor de todas era a que tu vias nos meus olhos. Eu, que não sou mãe, entendi que a maior dor de uma mãe é saber que a sua filha possui a maior dor do mundo e não poder tirar-lha. Quando no apogeu da esperança subi as escadas do sexto andar com a capa do senhor santo cristo nas mãos e ta depositei no colo, tu disseste Senhor, dai-me mais uns anos para eu ver essa filha. Foi a única vez que mencionaste a morte. De resto, era um assunto inenarrável e, até hoje, não me perdoo por te ter trazido dentro de quatro tábuas, num avião de lisboa - nos aviões que te encheram a vida de sonhos e passeios; naqueles que, tanta vez, nos passearam a liberdade.

Ao invés disso, depois de umas horas a gemeres porque os órgãos foram, por ordem, parando dentro de ti, pedi a deus, cobardemente, que te levasse para o paraíso. Fiquei de mão dada e não quis largar. Deram-me de comer e voltei a correr para ti. Destinei a tua mortalha, ainda não estavas oficialmente morta e detestei-me por isso. Fiz-te um discurso dizendo que foste a melhor mãe do mundo e pedi que desses um beijo meu ao Tibério. Esboçaste um ténue sorriso. Aí, era ainda o princípio da tarde. Seguiram-se muitas horas e, no meio das horas, eu pensava que há pessoas que dizem que os milagres existem, mas já nem sabia se o milagre, naquela altura, era tu viveres ou morreres. Agora, sei que era tu viveres.

Beijei-te e todos os roncos que o teu organismo produziu fizeram um eco no corredor e no quarto, mas onde eles se ouviam melhor era dentro de mim. Um segundo não passava antes que outro gemido chegasse e o meu coração batia com eles. Queria entrar dentro de ti e curar-te, mas não podia. Só podia ficar de fora e a única coisa que nos ligava eram as nossas mãos. Isso e uma vida inteira uma com a outra. Uma vida inteira que ia acabar agora. E eu não queria, nem quis. Quando uma enfermeira pôs a sua mão em cima das nossas, eu perguntei Morreu?

Ela nunca me respondeu. Até hoje estou à espera da resposta. Dói demais. Não quero ouvir. Só quero que tu saibas que te amo. 


7 comentários:

  1. Minha querida amiga, sou filha, mas também sou mãe, por isso consigo sentir tanto a tua tristeza e a tua dor como a da tua mãe... ;)
    Mais uma vez nos presenteaste com um lindo texto, cheio de ti. Obrigada!
    Estou certa de que a D. Vanda está em paz e, sem dúvida alguma, muito orgulhosa de ter uma filha assim como tu.
    bj
    A tua Ritinha

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  2. Também partilho da tua opinião - os textos (os bons)- não se conseguem desapegar do seu autor. E também acho que sim, que a vida é verdadeira, dolorosamente verdadeira. E que a escrita de qualidade (autobiográfica ou ficcional, os rótulos não interessam, nunca interessaram) traduz essa verdade, quer o autor a tenha vivido ou observado. Nos bons textos - e este é um excelente texto - ouve-se bater o coração de quem escreve e de quem lê. Sempre achei que era por isso que certos livros nunca morriam. Como certas pessoas.

    (Chicky has always been good with words! Damn you! ;))

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  3. Patrícia, é 1 e pouco da manhã, algures em Guimarães, e acabei de ler de um só fôlego (impossível ser de outra maneira) este texto, testemunho, dádiva... Devo dizer-te que o nó na garganta ainda não se desfez, ainda o sinto aqui agarrado.
    Há uns tempos ouvi alguém dizer que, quando percebeu que não tinha uma mãe a quem chamar mãe, sentiu que deus tinha cometido um erro gravíssimo. Fiquei com estas palavras presas na cabeça! Talvez a leitura do teu texto pacificasse essa pessoa, talvez lhe servisse de alguma coisa saber que, no exato momento de perguntar "Morreu?", "deus sentava-se a chorar connosco, impotente, nas escadas dum reinado que não era o seu".
    Obrigado, Patrícia, por tanta generosidade!
    Beijinhos do Domingos (teu colega, nas Capelas, há já uns anitos...).

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  4. Patrícia, minha querida tal como o Domingos acabei de "beber" estas tuas palavras de um só fôlego e realmente não pode ser de outra maneira! Que é feito desta coisa que nos faz existir, amar, e sermos pessoas? Somos feitos de quase nada e depois acabamos em quase nada e entretanto fizemos tanto. Nesta leitura permiti-me entrar no quarto sem bater à porta e espreitar esta cena e o pior é que não sou capaz de reagir e tudo se passou tão depressa e agora estou aqui tão longe e não faço nada, mas ao mesmo tempo no dia em que tudo aconteceu limitei-me a acender em Paris uma vela, uma luz pela tua mãe. Que senhora tão linda, tão delicada. Ao beber estas tuas palavras queria ter a coragem de te poder abraçar, mas faço-o no meu pensamento.
    No natal de 2012 perdi um amigo aqui num acidente da estrada. Não sei que me deu, fui visitar o corpo, falei com ele como o fazia antes e como eu gostava de o ajudar na " bricolage", mal vi os senhores da funerária com o material para fechar o caixão, achei que deveria ser eu a fazer. Todos sairam da sala, gritavam, choravam, desmaiavam e eu serena e até sorridente conversava com o meu amigo. Toquei-lhe a cara e a testa fria e eu insitia em deixar as minhas mãos quentes sobre ele, na esperança de poder aquecê-lo um pouco e confortá-lo. Arranjei-lhe as golas da camisa, para que estivesse mais perfeito e ele estava perfeito, apenas tinha os olhos fechados e testa fria. Pequei nos parafusos e fechei o caixão, com o cuidado e a ternura de quem chega à beira de um berço e vê um bebe a dormir. Era a mesma sensação. De longe que não é um sofrimento como o teu, era apenas um amigo, mas sei que qualquer parte ele está bem e posso contar com a sua energia para continuar a sentir a LUZ! Um abraço, coragem e sobretudo parabéns por dares às palavras a grande responsabilidade de falarem por ti e só o facto de o fazeres é uma terapia. Muita luz e muito amor!

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  5. Infelizmente, nem os maravilhosos textos como este, que fluem directamente do coração para o papel /ou a net, tiram a dor de ser orfã. E, sim, a pior dor é não conseguir tirar o sofrimento a um filho. Mas acredito, enquanto "orfã" da minha mãe não-biológica e enquanto mãe, que a D. Vanda reteve sempre uma felicidade: é a de tu continuares a viver. Quando te faltarem forças para a vida, pensa que a maior felicidade de uma mãe é que os seus filhos vivam, ainda que a ela a vida lhe falte. Beijos da Carla

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