sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

texto 3

A laranjada misturada com a frescura do pão com chouriço fez-me lembrar a festa da fajã e cheirou-me ao incenso esmagado debaixo dos pés. O dia está limpo e fresco. Não é daqueles dias que provocam angústias. É daqueles dias em que relembrar sabe bem. Aparece-me um sorriso na boca.

Esta sensação fez-me pensar na Júlia. Para mim, a Júlia é o máximo. A Júlia é uma menina de sardas e totós. Usa um gorro branco cheio de lã e aparece no conto de fadas de qualquer professor. No outro dia, expliquei uma coisa. No fim da aula, quando, no desafogo do intervalo, saíam como passarinhos, senti um abraço pequenino. Um abraço pequenino de uma pessoa pequenina. Era a Júlia que me dizia obrigada. Eu perguntei “obrigada, porquê, querida?” e ela disse “por me ter explicado aquilo que eu não percebia desde o 4º ano”. Fiquei embasbacada. Consegui responder um insonso “de nada” que, em nada, correspondeu ao que eu senti por dentro. Sou abençoada. Aquela menina é um anjo. Vir ter com um professor e agradecer-lhe o seu dever …

Fiquei a pensar neles: naqueles meninos, na Júlia … naqueles meninos, outra vez.

Sinto-me abençoada por ser professora. Por ter escolhido uma profissão tão extraordinariamente humana. Por, em vez alguma, me ter apetecido desistir de ensinar. Sim, já apanhei alunos muito difíceis: alunos toxicodependentes, alunos revoltados, alunos brutos, alunos amargos, alunos mal-amados, alunos que não querem aprender, alunos que não sabem, alunos que não gostam, mas, alunos. São sempre alunos. Gosto deles. De todos. Quando chego à escola, após 20 anos, e os vejo descer da camioneta, todos os dias, penso em como os pais e a sociedade confiam em nós. Despejam-nos de manhã e levantam-nos à noite. Passam os dias connosco e somos nós que, ao longo do dia, vamos dar-lhes os sorrisos, os sermões, os conselhos, as reprimendas, as esperanças, as expetativas, a matéria, os tpc’s, as fichas, os avisos, os gritos, as ameaças. E eles olham-nos de lá. Das mesas pequeninas. Atrás de cada mesa, uma pessoa. Grande ou pequenina. Meiga ou crua. As mochilas, os penteados, os cadernos, os telemóveis, os cachecóis, os lenços, os estojos, os lápis, as argolas, os livros, os cadernos, os quadros, as janelas, as portas e a sala. Um mundo. O meu mundo.

Os alunos são, incrivelmente, “eles mesmos”. Têm uma vida tão nova para gastar. E como são muito novos, por vezes, não sabem usá-la. Variam as idades, os feitios, as alturas, a cor do cabelo, o estilo, os grupos, as tendências, as inteligências, as vontades e a sabedoria, mas todos querem o mesmo: passar. Mesmo os que dizem que não; mesmo os que não parecem importar-se. Nunca viram a alegria nos olhos de um aluno? O brilho de uma positiva? É um bocadinho de magia. Às vezes, só um segundo de magia. Mas é magia.

Volto àqueles meninos. Aos meninos da Júlia. À Júlia e aos meninos. Sou abençoada por ser professora deles. Eles trazem alegria, brilho, vivacidade e vontade. Querem saber, conversam, desconversam, mexem com a sala, provocam ruído, fazem silêncio, perguntam, elaboram, trabalham, preguiçam, melhoram, pioram, estudam, fazem e não fazem. São como todos e todos são como são. A Júlia é “ela própria”. Fez um trabalho para o dia internacional da pessoa portadora de deficiência e fez o trabalho pela turma. A Júlia é a Júlia. Tem luz. Nem todos são anjos, mas todos são pessoas. Só, por isso, devem ser amados.

Hei de morrer professora.