HORA
DA MÃE
É
uma espécie de torpor, a escrita. Algo que nos invade e que, depois, nos faz
separar do mundo. Ocorre uma espécie de pausa no sofrimento. A escrita é,
muitas vezes, terapêutica e não há, na minha opinião, texto que consiga
desapegar-se do seu autor. Se o texto é autobiográfico ou não, é algo que nunca
me incomodou. Que perguntas é que eu posso fazer por ti? - perguntam-me as
minhas palavras.
Era
verão e estava sol, mas eu não estava na praia e, quando estava, olhava para o mar
e para o sol como se existisse um vidro e os sentimentos me tolhessem a visão.
Esperava pela hora da visita e esperava que deus me viesse fazer uma visita no
olhar de uma enfermeira ou na boca de um médico. De manhã, empatava as horas,
percorrendo as ruas da cidade e aquilo que outrora me fazia sentir feliz
pesava-me no peito. Via as pessoas ir para o trabalho ou para a praia; via
pessoas a entrar nos cafés e considerava-as felizes. Pensava que me podiam
também considerar feliz, pois eu envergava vestidos coloridos e apressava o passo
a fingir que a vida era leve. Apanhava o autocarro. Um número que decorrei e do
qual nunca mais me lembrei. Enfiava-me lá dentro todos os dias, à mesma hora, e
pensava que um dia já não ia precisar de o fazer mais. E assim foi.
O
autocarro arrancava e eu sentava-me sensivelmente no mesmo lugar. Com a cabeça
encostada ao vidro, punha as mãos dentro do saco e sentia que as minhas mãos
apalpavam uma garrafa com água por beber, ou um pedaço de papel. À mistura,
havia um pedacinho de pano com uma casa de ponto cruz bordada por mim e uma pequena
revista de moda. O autocarro passava pelas mesmas ruas todos os dias e eu
reconhecia as lojas, os quiosques, os apeadeiros, as passadeiras, os postes de
luz e o Júlio de Matos. Mais à frente, o autocarro inquinava com o sol e a
torre do tombo caia-me na cabeça. O autocarro passava em frente ao teu hospital
e eu queria que ele andasse muito e que nos fosse buscar ao futuro. Mas não era
assim. A vida é verdadeira.
Estacava
o autocarro e eu saía. Era muito calor. Estava muito calor. Em lisboa, em
agosto, faz muito calor. O alcatrão subia-me à goela e eu aproveitava para me
ouvir dizer Que calor! Andava uns metros e aquele passadiço era o passeio do
campo de Fátima, o passeio das preces. Um edifício grande albergava cinco mil funcionários
e o dobro dos doentes. Todos os dias aquele edifício me engolia e andava por
mim. Estavas no sétimo andar e os corredores estavam longe de ti. Para chegar
ao elevador que me levava ao sétimo andar tinha de ler as instruções, pois os
elevadores confundiam-se com a classificação dos pontos cardeais. Apanhava o ar
que me levava a ti. Esperava-se muito: por vezes, trinta minutos. Esperava-se
trinta minutos no rés-do-chão. O elevador enchia-se comigo e com outros
familiares. Por vezes, saíamos todos no quarto andar, pois aparecia uma cama e
a cama tinha direito e nós não. Olhava para o relógio, pois o tempo ficava mais
triste no elevador. Finalmente, chegava ao sétimo andar. Misturado com o alívio
de chegar ao meu destino ficava o aperto de ser surpreendida com o
desconhecido. Sabia que te ia ver, mas nunca chegava. Não era o suficiente
ver-te. Eu queria mais.
Entrava
na enfermaria e lia pela enésima vez as suas letras. O nome pairava sobre as
nossas cabeças e avisava-nos que os nossos familiares estavam nos cuidados da
hematologia. Aí, desligava os sorrisos que tinha esboçado aos outros familiares
e só me interessavas tu. Ia encontrar-te dentro de segundos e pedia a deus que
me dissesses Filha o médico diz que tenho melhoras; que já não é preciso fazer
o autotransplante; que a massa desapareceu e que vou voltar a ver as flores da
fajã, mas não. Nada disso. A vida é verdadeira.
Entrava
no teu quarto. Era uma prisão. Tinham-me posto uma bata azul esterilizada e uma
máscara a tapar os lábios. Sorrias e dizias olá. Eu entrava depressa e olhava
para a bacia onde timidamente lavavas a cara de manhã, quando te deixavam
levantar. Olhava para a janela e reparava que ela havia de permanecer fechada.
Olhava para ti e via os teus olhos azuis cheios de mim. Beijava-te muito.
Beijava-te a cara, a cabeça careca, beijava-te, outra vez, tanto, que tu dizias
Está bom. Se eles põem uma máscara é para me protegerem dos micróbios, filha.
Quais micróbios, mãe! E sorvia os beijos com medo que fossem os últimos que
te dava. Perguntava por tudo, mas olhava atentamente para ti. Tu eras muito
bonita, mãe. Mas já não gostavas de te ver ao espelho. Nunca foste vaidosa.
Pouco tempo tiravas para ti e, agora, que tinhas tantas horas para gastar, não
olhavas para ti.
Via que tinhas um tubinho novo, ou que as nódoas negras se
tinham alastrado ou que o sangue naquele tubo estava mais denso. Ajeitava-te os
tubos e passávamos à hora da vaidade. Eu fingia que estávamos muito contentes
com a muda da fralda-cueca e queria todos os dias vestir-te uma camisa de
dormir que fosse tua. Tu, muito pragmaticamente, como sempre, dizias que as
senhoras enfermeiras e os senhores enfermeiros preferiam as camisas do
hospital, mas eu sabia que eles eram uns queridos e que tu só fazias isso,
porque, mesmo a morrer, pensavas nos outros. Eu continuava a trazer-te camisas
novas e tu dizias Filha, tens o meu cartão para pagares estas camisas? E eu,
que não era preciso, que era uma oferta minha. Gostavas, pela primeira vez na
vida, que te massajasse as mãos. Passava creme nas mãos e esfregava
devagarinho. Olhavas para os teus dedos e olhavas para os meus olhos quando
perguntavas se ias conseguir voltar a escrever. Eu dizia Claro que sim, mamã,
mas não sabia.
Não sabia se ias voltar a escrever e olhava para os teus papéis.
Reparava que não conseguias escrever bem o nome Vanda. A caligrafia estava
larga. As linhas tombavam e tu dizias-me que era o teu pior receio: não voltar
a escrever. Tu, que eras professora. Eu incentivava-te e dizia A mamã que
continue a treinar com a bola de borracha. Mas os teus dedos e as tuas mãos
estavam queimados pela quantidade de quimioterapia que levaste. Foi por isso
também que pesavas trinta e sete quilos. O medo de saires do hospital era tão
grande como o medo da verdade. Deus conhecia a verdade desde o início e nós não. Ele
brincou connosco nos corredores do hospital e a morte escapava-lhe ao controlo.
Aí, nesse grande monstro que engoliava famílias, dia após dia, deus perdia o controlo.
Foi por isso que a morte venceu quando levou a mãe de uma menina de 9 anos e um
rapaz de 20. A morte aparecia nos sacos pretos da quimioterapia e comia todos
os glóbulos que lhe apetecia. Então, deus sentava-se a chorar connosco,
impotente, nas escadas dum reinado que não era o seu.
Com
o cair da tarde, a angústia subia: tinhas medo que eu andasse sozinha no metro
e eu tentava acalmar-te dizendo o quanto já era crescida e como sabia andar
naquela cidade sozinha. O teu medo - de não me conseguires proteger mais - ia
comigo quando eu descia as escadas ventosas. Sabia que nunca mais ias pôr-me o
braço por cima. Consumia-me que eu fosse ter um serão, enquanto tu ficavas com
quatro paredes beges e um lavatório branco. A televisão funcionava, mas as tuas
preocupações ficavam bem para além daquele quarto. Pairavam nas memórias da
extraordinária infância que me deste, no facto de eu poder ficar órfã de pai e
mãe, no facto de saberes que eu teria de despejar uma casa de doze assoalhadas
recheada de um património de quatro gerações, no facto de não saberes se me ia
lembrar de avisar todos os amigos para o teu um funeral, ou no facto de saberes
que eu ia perder a pessoa mais importante da minha vida: tu.
Para
além disso, a maior dor de todas era a que tu vias nos meus olhos. Eu, que não
sou mãe, entendi que a maior dor de uma mãe é saber que a sua filha possui a
maior dor do mundo e não poder tirar-lha. Quando no apogeu da esperança subi as
escadas do sexto andar com a capa do senhor santo cristo nas mãos e ta
depositei no colo, tu disseste Senhor, dai-me mais uns anos para eu ver essa
filha. Foi a única vez que mencionaste a morte. De resto, era um assunto inenarrável
e, até hoje, não me perdoo por te ter trazido dentro de quatro tábuas, num
avião de lisboa - nos aviões que te encheram a vida de sonhos e passeios;
naqueles que, tanta vez, nos passearam a liberdade.
Ao
invés disso, depois de umas horas a gemeres porque os órgãos foram, por ordem,
parando dentro de ti, pedi a deus, cobardemente, que te levasse para o paraíso.
Fiquei de mão dada e não quis largar. Deram-me de comer e voltei a correr para
ti. Destinei a tua mortalha, ainda não estavas oficialmente morta e detestei-me
por isso. Fiz-te um discurso dizendo que foste a melhor mãe do mundo e pedi que
desses um beijo meu ao Tibério. Esboçaste um ténue sorriso. Aí, era ainda o
princípio da tarde. Seguiram-se muitas horas e, no meio das horas, eu pensava
que há pessoas que dizem que os milagres existem, mas já nem sabia se o
milagre, naquela altura, era tu viveres ou morreres. Agora, sei que era tu
viveres.
Beijei-te
e todos os roncos que o teu organismo produziu fizeram um eco no corredor e no
quarto, mas onde eles se ouviam melhor era dentro de mim. Um segundo não
passava antes que outro gemido chegasse e o meu coração batia com eles. Queria entrar
dentro de ti e curar-te, mas não podia. Só podia ficar de fora e a única coisa
que nos ligava eram as nossas mãos. Isso e uma vida inteira uma com a outra. Uma
vida inteira que ia acabar agora. E eu não queria, nem quis. Quando uma
enfermeira pôs a sua mão em cima das nossas, eu perguntei Morreu?
Ela
nunca me respondeu. Até hoje estou à espera da resposta. Dói demais. Não quero
ouvir. Só quero que tu saibas que te amo.