sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

texto 2

Uma amiga minha tem cancro. Aliás, duas amigas minhas têm cancro. É o máximo que vou dizer delas, pois não lhes pedi licença para falar delas aos outros, muito menos para publicitar num blogue seja o que for sobre elas. De qualquer modo, esta situação fez-me pensar muito: nelas, nas pessoas que têm cancro, na minha mãe, que teve cancro, e no natal. O natal misturou-se-me com outras ideias, pois, na semana passada, retirei um caixote que continha bonecos de presépio. Bonecos de barro, antigos.

Desde o ano em que a minha mãe morreu de cancro que não ia buscar aquele caixote. Já tinha feito o presépio o ano passado, mas sem aqueles bonecos. Tentava aliviar a dor, pondo um menino jesus mais modernaço, com uns laços estilizados e uma ervilhaca frondosa. Este ano, convenci-me de que não ia adiar mais o inadiável. Assim, recuperei a memória de todas as minhas emoções natalícias, ao desembrulhar aqueles bonecos, um a um, à medida que os ia tirando do caixote. O papel sempre cheirou a mofo, mas aqueles bonecos sempre me trouxeram a maior alegria do mundo, no natal.

A minha mãe contava, todos os anos, uma história sobre eles. O meu presépio era feito no alto da escada e encimava um patamar. O meu presépio tinha dois andares: era um luxo! Sustentava-o uma armação construída pelo avô artur. Conhecem aquelas luzes que parecem estrelinhas e que piscam muito, aquecendo o nosso coração? Era assim o meu presépio. Perfeito.

No primeiro andar, havia a sagrada família e o menino jesus era muito maior do que os pais; havia uma lavadeira e uns patinhos que desciam uma ribeira; havia um lago feito com um espelho que a avó armanda guardava na gaveta da cómoda; havia 6 reis magos (uns que chegavam à gruta e outros que ainda iam a caminho – dizia a minha mãe). Fui apresentada a diferentes pastores, aos seus rebanhos, a um casal de noivos, ao padre e ao sacristão. A minha mãe explicava-me que não fazia mal existir um soldado no presépio. Aprendi que somos todos bem-vindos! Que, no presépio, o mundo é perfeito! Que podem coabitar seres de diferentes origens, raças e épocas cronológicas diferentes, pois um presépio serve para isso mesmo: para nos ensinar como devemos ver o mundo e como devemos lidar uns com os outros, durante o ano inteiro.

O meu presépio tinha uma rapariga muito bonita a sair duma casa velha e uma rapariga pobrezinha a sair de um palácio; umas levavam laranjas e ameixas ao menino jesus; outras, presentes de incenso, ouro e mirra. O moinho trabalhava e moía a farinha do padeiro. O mesmo boneco, todos os anos comprava um saco de farinha e levava-o no seu burro. Os foliões tocavam e uns bonecos mais pequeninos eram os dançarinos. Havia uma matança do porco e uma mulher, com uma saia de chita, que circundava a matança. Para que era? Ela ia recolher o sangue para as morcelas.

Muitos e muitos bonecos, cheios de vida, de história e de alegria. E a minha alegria enchia o meu peito e espalhava-se pela casa, cheirando, cheirando. No fim, a minha mãe ligava as luzes. Vocês nem imaginam a beleza que era! A casa cheirava a sabão branco e azul; as escadas tinham sido enceradas e, no parapeito que acompanhava o corrimão, púnhamos uns candeeiros de petróleo que tinham vindo do nordeste. Baixava-se a luz do alto e esperava-se a hora do jantar. Cheirava o jantar que a avó fazia. A minha mãe ia tomar banho e ficava toda cheirosa. Eu aguardava a minha vez e pregava os olhos no presépio. O meu pai ia chegar. Era vivo. Eram todos vivos. O meu presépio era perfeito.

Este ano, tirei a matança, a menina das morcelas, os foliões, os romeiros, os noivos, o padre e o sacristão. E chorei, chorei. O salgado das lágrimas misturou-se com o mofo do papel. Mas ficou tão bonito o meu presépio. Cheio da minha mãe e de mim.

Eu estou viva e as minhas amigas também.

Elas estão a ficar boas. 

Bem bom que ainda tenho bonecos. 

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Texto 1

Assim, de repente, não sei a quem escrever. Como se, de repente, não houvesse destinatário; como se as coisas supérfluas fossem mais importantes do que as essenciais. Parece-me, hoje, que o meu mundo é o daqueles que os velhinhos diziam. O mundo do não presta. O mundo do sem sentido. Mas eu sinto-me plenamente viva e, porque vivo, recordo.
Talvez o karma seja o que nós interpretamos para nós como o “algum sentido nisto”. Talvez o karma exista acima das definições religiosas, seja uma espécie de definição do barro. O meu molde pode estar ligado ao entendimento da morte ou à aceitação da solidão.
Não gosto muito de pôr as coisas em termos pessoais. Assim sendo, parece-me que faço o canto do choro; o muro das lágrimas. Quando nos centramos em nós, damos muita importância a nós. Ficamos as vítimas. Ficamos acompanhados de espetadores que observam o quanto miseráveis somos ou nos queremos fazer parecer, pedindo dó e piedade. E não é isso que quero. Só quero um destinatário. Alguém que me ouça, calado. Ou que me leia, através das linhas, ou da minha cara. A minha cor mais amarela, do cansaço, farta de dizer à vida que não me apresente mais a morte ou a esterilidade.
Morte e tio dionísio. 
Morte e bisavó Ludovina. 
Morte e primo Manuel. 
Morte e pai. 
Morte e primo José.
 Morte e primo António. 
Morte e tio José. 
Morte e tio Manuel.  
Morte e avô Ernesto. 
Morte e avó Armanda. 
Morte e avô Artur. 
Morte e mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe e mãe.
Ouves-me? Mesmo que sim, não me interessa. Não me respondes.
Estou sozinha.
Espero que me ouças.